domingo, 15 de dezembro de 2013

Orlando Vitorino: Pai eterno

O texto que dou a ler hoje é um testemunho emocional sobre o meu Mestre, o filósofo Orlando Vitorino.

Corre hoje o décimo aniversário sobre o falecimento de Orlando Vitorino (1922-2003), um dos mais decisivos filósofos portugueses do século passado. Com ele, convivi desde a idade da dor numa relação de cúmplice, amigo e discípulo. Das conversas iniciais, lembro as suas palavras quando nos olhámos: “vamos fazer uma revista juntos!”, disse para minha perplexidade. Mais tarde, envolvi-me na "Escola Formal", dirigida por Orlando e Afonso Botelho, e o filósofo foi presença constante e importante em todas as minhas iniciativas editoriais. O dizer de Orlando assinalou o nosso encontro, talvez porque seria parecido a um outro, de Rolão Preto que, já velho e acompanhado pelo fantasma da morte, observou-me mais ou menos o mesmo.

Com Orlando vivi intensamente o deslumbramento da inteligência, da genialidade e da luz. Um convívio, por alguns períodos diário, que marcou a idade da aprendizagem e acabou por influenciar a minha personalidade, também enquanto homem de espírito e escritor. Foi este filósofo que me introduziu na tertúlia de Álvaro Ribeiro e na Escola de Filosofia Portuguesa.

Era uma personalidade fascinante e admirava-o profundamente. Era um “Pai”, que muitos dos amigos e conhecidos pensavam ser de sangue. Neste passo, os termos “Padre” e “Pátria” emergem na evocação. Através de Orlando, amava todo o saber do mundo e, nesta livre adesão, se foi formando a minha alma. Na admiração e no entusiasmo nem me dava conta da mortalidade do homem: na verdade, a morte não era coisa para um filósofo que tudo fazia depender do logos na forma demonstrativa e, por isso, sedutor para as outras inteligências. Ficou na memória, o momento em que percebi que Orlando era um comum mortal e que também se enganava: o primeiro, em Coimbra, quando se desequilibrou numa armadilha da calçada escorregadia da velha cidade; a segunda, quando interrogou uma frase sugerida pelo filósofo e que, prestes, introduzi num texto de minha autoria. Quanto à primeira surpresa, hoje continuo a pensar que a sua alma é imortal. Todos morremos? Talvez nem todos se submetam a essa certeza, enquanto a memória e o seu excesso forem  Vida e se inteligir a verdade patente na comunicação entre espíritos e pessoas. Quanto ao segundo momento, aprendi a lição: a adesão ao que o Mestre sabe não pode nem deve obstruir a inteligência.

Orlando transmitiu-me o amor à verdade, ao espírito e à liberdade. Sempre lembrava que a sabedoria que nele radicava era a de uma tradição, sustentada na teoria da verdade de José Marinho e na doutrina do espírito de Álvaro Ribeiro. O ideal da liberdade esteve sempre presente nos seus ensinamentos. Para Orlando, como para os seus mestres, a Escola de Filosofia Portuguesa não é lugar de cultura, nem enciclopédico, mas sim onde cada um nós, através do exercício autognósico nos sabíamos ignorantes da verdade que, entretanto, já imaginávamos unívoca. A tertúlia é um sítio de ignorância e esperança. Ao jeito dos miúdos, através da ignorância espreitávamos a verdade ou, noutros termos, pela sombra que nos protegia da cegueira, caminhávamos para a luz. O método da Escola de Filosofia Portuguesa é esotérico, mas patente, radiante e luminoso. Tudo o resto são momentos que se tornarão substanciais, e talvez enganadores, se o ser não for tão só a verdade que é.
Orlando era um pensador de inteligência principial e tudo fazia depender de dedução e demonstração firmados no espírito. Os amantes do espírito assumem este aspecto: o logos é enunciado de forma tão inteligente que parece fácil, quase tanto quanto a pressa em classificá-lo de “racionalista” ao modo vulgar da cultura oficial e segundo os ditames da filosofia moderna ou triunfante. Orlando Vitorino é um místico que tem a luz da teologia e, se quisermos, da gnose cristã.

Na sua geração, foi talvez o que mais concretizou a expressão da filosofia portuguesa em diversos domínios da vida social. Teve realização política, como a campanha presidencial que realizámos em 1986, na qual propúnhamos ideias, hoje cada vez mais actuais e necessárias à felicidade dos portugueses (Orlando deixou-nos o relato desta aventura em “O processo das presidenciais 86”).

A visão dos princípios e o inteligente pensar emprestavam-lhe um carácter apolíneo, segundo uns; radical, na opinião de outros. Não obstante, a coerência, por vezes telúrica, de um sistema de noções, teses e ideias que expôs para a Escola de Filosofia Portuguesa, sempre foi sedutora. Para além da teologia cristã, as suas deduções políticas em tempos outonais da Pátria, fizeram-no percorrer caminho dos solitários. Na vida e na morte, como tem sido patente até aos nossos dias.

Para além de “Refutação da Filosofia Triunfante”, que o autor considerava uma arma, e a “Exaltação da Filosofia Derrotada”, Orlando escreveu “As Teses da Filosofia Portuguesa”, obra que, por alguma razão obscura, não é publicada. Entretanto, deixou-nos alguns escritos decisivos, como “Notas sobre a degradação do Espírito”, “A Teoria da Verdade de José Marinho”,  “A Doutrina do Espírito de Álvaro Ribeiro”, “Ensaio sobre o que é o pensamento” ou “O pensamento é o homem”. Não podemos ainda esquecer numerosos textos sobre estética. Neste domínio, surge o pseudónimo Ernesto Palma, um homem de teatro, que assinou um acervo sobre doutrina teatral, cuja importância é ainda hoje desatendida.

 

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