quarta-feira, 13 de maio de 2015

Portugueses na clandestinidade

A partir de hoje, o Acordo Ortográfico passou a ser de utilização obrigatória em Portugal. Já em Setembro de 1989, em editorial da "Leonardo", revista de filosofia portuguesa, declarava a Língua Portuguesa na clandestinidade; agora, passei a ser oficialmente analfabeto. Anuncio também a minha passagem à clandestinidade. Tenho dito!

A situação cultural da língua portuguesa tem sido nos últimos meses escopo de notícia a propósito do anteprojecto Bases da Ortografia Unificada através do qual se pretende colocar o nosso idioma ao serviço das técnicas de domínio dos povos.

Nestas páginas já afirmámos que as reformas dependem de raciocínios falaciosos que impõem ilusórias soluções para falsos problemas. Tais métodos resultam de atitudes tecnocráticas, burocráticas e administrativas do funcionalismo público e da classe política e obedecem a critérios, hoje tidos correctos, já amanhã considerados errados.

Prosseguindo finalidades utilitárias e pragmáticas, o chamado acordo ortográfico procura unificar e simplificar a língua portuguesa, objectivo que as tubas oficiais e institucionais anunciam como necessário ao advento da eficácia da cultura portuguesa no mundo. É evidente a influência dos tentamos da política e da economia, ignorando-se que o idioma não é mero instrumento da praxis ideológica, nem dos processos do negócio.

Em outro aspecto, o referido acordo enferma de um anquilosado estruturalismo linguístico que, ao jeito da doutrina positivista, concebe a língua, qual matemática, composta por signos passíveis de simplificação. As frases são já, e tão-só, operações de carácter abstracto e sem verificação empírica ou real. Estas construções mentais, confundidas com o regresso ao uno, à unidade e ao universo, são consideradas tópico universal da língua. Tal pretensão é desmentida pela gramática, primeira iniciação à ideia de Pátria, e pelo espírito que pesa, conta e mede a ordenação da realidade.

O acordo não atende à semântica, à simbólica e à estilística e, por conseguinte, carece de capacidade para transmitir as virtualidades poéticas, filosóficas e cientificas da língua portuguesa aos outros povos lusíadas do concerto das nações. Ao impor a simplificação ortográfica, o anteprojecto somente sanciona a deturpação da língua e a decadência do pensamento, despe-a do querigma.

Aquele documento apenas procura valorizar o linguajar de rua formada por uma linguagem comum marcada pelo espírito digamos demoníaco, da imprensa e das chamadas técnicas de comunicação de massas. Efectivamente, até a pronúncia e a fonética, disciplinas auxiliares da filologia, não estão adequadamente consideradas, pois não são respeitadas, por ignorância ou preguiça, pela linguagem corrente, que agora se pretende impôr a todos os modos de falar, escrever e pensar português e em português.

A situação é tanto mais grave quanto se procura introduzir e até, fixar, grafias brasileiras, intenção que associada à nefasta vigência de nomenclaturas, classificações e definições germânicas e francesas, mais ainda deturpam a vida das palavras e do idioma.

A confessada intenção de desvalorizar a etimologia é pretender obscurecer o significado das palavras, o que equivale a ignorar a tradição. A refutação da tradição, questão que pertence ao domínio do pensamento humano, é impedir a formulação de um ideal patriótico através do qual todos nós comungamos um ideal de homem.

As línguas tornam-se ignorantes do espírito e diminuem-se em meras convenções impostas pelas instituições. Diremos então: oficialmente, a língua portuguesa morreu e está transformada numa língua de escravos, servos e bárbaros. A língua dispõe duma relação étnica assinalada pela semântica, sintaxe e estilística, aspectos que, digamos, reflectem modos próprios de imaginar, pensar e sentir de cada povo. O idioma mostra o carácter e o grau de civilidade do seu ideal de homem e do mundo.

O valor comunicativo da língua patenteia-se na filosofia, na arte e na ciência, mas sobretudo reside numa razão que demanda a tradição que lhe assegure actualidade. Essa tradição é a enigmática aliança que converte a comunidade dos homens num convívio de espíritos. Queremos significar o seguinte: os idiomas assinalam a transcendência da humanidade. As palavras sofrem metamorfoses e no trânsito são, por assim dizer, as naus dos anjos ou das divindades.

A epifania do logos cai nas categorias do pensamento humano e origina as tradições entre os homens.

O estilo, sinal do logos, é a razão eficiente das línguas que se tornam símbolos de pátrias.

A arte poética ensina-nos que as palavras emergem do espírito e que, por conseguinte, é de sua natureza o serem invioláveis. Do problema ao mistério, as palavras guardam a inspiração dos poetas, escritores e filósofos, esses a quem os antigos clamavam serem rapsodos dos deuses, para enunciarem as analogias, actuais ou patentes, que potenciam a espiritualidade da comunidade dos homens. A eles se deve a concepção de novos significados e originais relações sintácticas que visionam o estilo de cada povo, ou seja, a ulterior visão do homem e do mundo. No domínio antropológico, isto é, no que não depende do original socorro do espírito paracléctico, aqueles teólogos são os autores da língua.

Uma unidade linguística equivale a realidade de um pensamento e, em consequência, a virtualidade de uma Pátria. Não é história, a arte, a politica, a religião, a cultura ou o culto que por si geram as pátrias. Nesses domínios, buscam-se argumentos que se aduzem a existência de cada povo e, até, de uma Nação ou Estado. Não obstante, são insuficientes para esclarecer a realidade de uma entidade espiritual que carece do concurso do espírito humano.

As pátrias resultam da especulação filosófica sobre os acontecimentos e eventos históricos e artísticos, políticos e religiosos, culturais e cultuais. Queremos dizer: ao homem é necessária a pátria porque insituados só os anjos e os deuses. Ela é o nexo entre o espírito humano (o homem) e o Espírito puro, ou se quisermos, o Espírito Santo. A palavra é categoria de perfeição e a perfeição é imutável.

Sem a palavra, o ideal patriótico permaneceria oculto e incomunicável, ou seja, apenas seria uma virtualidade subjectiva do imperfeito pensamento. Desde todo o sempre, a palavra e portadora da perfeição e da boa nova. Do verbo fiiosofante emerge a finalidade espiritual e transcendente de um povo e a consciência patriótica de cada um de nós. É a arte de pensar, ou seja, a filosofia que concebe as pátrias.

Emergentes do pensamento, as pátrias não são instituições, embora sejam institucionalizáveis ou constitutivas. A consciência patriótica não carece de urna arquitectura jurídica para se objectivar. A pátria firma-se no pensamento, expressa-se pela palavra e perdura na língua.

Neste passo retira-se que a língua garante a realização do Direito ou do Estado pelo que a legitimidade das instituições também deriva do uso que fazem do idioma. Como sublinhamos em anteriores edições, o Direito introduz a Verdade, a Liberdade e a Justiça nas relações sociais e na vida comum dos Portugueses.

Convém não esquecer que deturpar a tradição e na acção politica obstruir a Verdade, a Liberdade e a Justiça e equivale indeterminar a coisa pública, isto é, a República.

Sem as categorias próprias a situação do nosso pensamento, a presença do espírito entre os Portugueses e é ditada por concepções retiradas de vivências de outros povos.

São conhecidas casos de legislação produzida por órgãos de soberania traduzidas de leis que vigoram em Bona, Paris ou Bruxelas. O Estado faz um delito de cópia, utilizando uma expressão do nosso Sampaio Bruno.

A tradução literal é uma técnica cujas deficiências explicam-se pela vivência própria de cada pensamento. O poeta Teixeira de Pascoaes afirma que o génio de um povo reside nas palavras intraduzíveis do seu idioma para significar que as suas características, patentes na semântica, na sintaxe e na estilística, não permitem a tradução sob pena de deturpar as relações entre o natural e o sobrenatural que a língua exprime. A tradução contradiz a tradição, adverte Álvaro Ribeiro.

Por outro lado, é verificável que a filosofia da linguagem e a teoria da palavra expostas e esclarecidas em obras de poetas e filósofos Portugueses são ignoradas nas instituições universitárias e, por conseguinte, não tem acompanhado o ensino da nossa língua nas escolas. É significativo que nas bibliografias dadas aos alunos da disciplina de filosofia da linguagem não constem quaisquer nomes de autores Portugueses.

Esta hostilização social tem sido combatida por filósofos, escritores e poetas, discípulos do magistério filosófico e poético de Leonardo Coimbra e Teixeira de Pascoaes e continuadores dos ideais e da doutrina exposta pelo movimento A Renascença Portuguesa. O repúdio da consciência patriótica e do espírito que enforma a língua portuguesa impedem a iniciação das novas gerações de Portugueses na ideia de Pátria, sendo decerto uma das causas do divórcio existente entre as instituições e a Nação.

Oficialmente, a língua portuguesa é clandestina. Em nosso parecer, a língua pátria é um sagaz silêncio da oprimida alma lusitana.

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

O regresso do “lápis azul”

Segundo as novidades da imprensa, o Governo aprovou legislação sobre a "luta contra o terrorismo" que inclui a criminalização do acto de aceder ou ter acesso aos sítios da internet onde se incita ao terrorismo. Para além da subjectividade da questão já apontada por analistas, não estaremos perante a introdução efectivo da censura e um ataque à liberdade individual? 

A internet é um instrumento de liberdade e o mais poderoso meio expressão da pura subjectividade dos indivíduos na sociedade. A censura contraia o desenvolvimento das comunidades, sendo certo que sem liberdade politica não liberdade económica. 

Publicamos uma série de artigos em que abordamos estas questões que foram dados à estampa no Diário de Notícias em 2003 em artigos que foram reunidos em livro que intitulámos “Webnotas, da sociedade de informação ao novo estilo de vida”.

Liberdade

Uma das características mais decisivas do novo estilo de vida advém dos hábitos, comportamentos e atitudes suportados pela democratização das tecnologias e, principalmente, pela possibilidade de cada um poder exprimir socialmente a sua subjectividade, sem intervenção das tradicionais tubas de poder da sociedade moderna A expressão de necessidades e desejos foge, cada vez mais, às noções de classe ou segmento, através dos quais teorias filosóficas, políticas e económicas procuram diluir e anular o indivíduo num ser genérico, ou se quisermos, numa «massa». Conceitos como o de personalidade são generalizados até à abstracção que resulta do desenvolvimento do gregarismo que transforma o indivíduo num espectro humano. 

A arte de pensar, que tem na autognose principial preceito, é preterida pelo comportamento voluntarista, de quem vive um estado alienado, mais permeável à manipulação. As pessoas não são consideradas no que têm de inédito e original e a invidualidade passa a ser origem do mal. A liberdade perde o seu carácter espiritual e decai numa prática. Os instrumentos passam a determinar valores e finalidades que só na acção, e pela acção, adquirem realidade. Como a acção não é perpétua, tudo será mera virtualidade e não existente. A utilidade, principalmente a que promove a exploração e a posse, é o que mais importa. 

«Contra factos não há argumentos» é o adágio desta visão. O abandono da liberdade, do bem e da verdade só não é radical e irredutível porque são princípios constitutivos do pensamento presente em todos os seres e em todas as coisas. Porque só se pensa o bem e todo o pensamento contém, de algum modo, verdade, a entificação do mal, véu do erro, surge na história e na humanidade. Apenas a sua existência parece obstruída até que o movimento eterno o revele. Não obstante a situação cultural, política e económica possa difidultar a sua realização, a liberdade não se diminui à realidade sociológica. A escolha e a opção, tópicos utilizados pelos modernos para aferir o grau de liberdade pessoal, são critérios voluntaristas e opiniosos. A liberdade é um princípio de pensamento que, insubstancial, antecede a lógica e o nexo.

segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

Guilherme Manpuya: "A eternidade é uma criação artística"

O texto que se publica é a reprodução de uma conversa com Guilherme Manpuya, ocorrida em Maio de 2011, em Luanda, a propósito de uma exposição que realizou no Instituto Camões nesta cidade e que foi publicada em forma de entrevista no semanário SOL Angola, com o título "Guilherme Manpuya no Instituto Camões em Luanda".

“O Tempo Não Pára” é o tema da exposição do pintor Guilherme Manpuya que vai ser inaugurada no próximo dia 25, Dia de África, no Instituto Camões, em Luanda. «Um tema escolhido em conjunto», revela o artista ao SOL. «Quando me contactaram, já tinha a ideia de pintar uma série de quadros ao jeito de crónicas do dia-a-dia», afirma. No fundo, o movimento das coisas que vão acontecendo, ou nas palavras do pintor, a «fluidez do tempo».

As obras que vai apresentar ao público são, todas elas, inéditas. «Pintadas entre Fevereiro e Abril deste ano», precisa. Quanto a novidades, a revelação pública de um novo caminho. «Geralmente, as minhas telas são totalmente preenchidas, o que não vai acontecer desta vez», revela Manpuya. As cores dominantes são o vermelho, o azul, o branco e o verde-limão. Sobre a reacção do público espera para ver: «Lerei as expressões dos rostos e logo saberei a apreciação que fazem».

De Picasso a Dubuffet

Entre as duas dezenas de obras, oito “falam” entre si e funcionam como um políptico. No total são 2,40 por 1,24 metros de tela que vão estar no Instituto Camões, na capital angolana.
O diálogo com o pintor decorre solto e sem alinhamento. Miguel Ângelo é nome muitas vezes lembrado, mas também surgem outros. Picasso é um deles: «Estudei este pintor que me ensinou uma regra: pintar todos os dias».

Mas não lhe bastava. Era "popular" e superficial em muitos aspectos. A visão que buscava nos anos de aprendizagem descobriu-a, mais tarde, num grande mestre da pintura: Salvador Dalí. “Nunca se compreende plenamente a profunda visão mística de Dalí”, alerta. Além da infinita imensidão que lhe ensina este pintor, Guilherme Manpuya lembra que alguns dos seus traços são inspirados em Jean Dubuffet, o criador da “arte bruta”, expressão que designa os criadores livres de qualquer influência de estilos oficiais, incluindo as diversas vanguardas, ou das imposições do mercado de arte.

Caminho igual a Haring

Segundo Manpuya, o pintor francês «minimiza o ver no traço e, deste modo, foge ao realismo». E conta uma história: «Certa vez, um amigo olhando para as minhas telas reparou nas semelhanças com um artista norte-americano, Keith Haring». Alertado, foi informar-se sobre este pintor e descobriu que, também ele, tinha buscado inspiração em Dubuffet.

Guilherme Manpuya e Francisco Moraes Sarmento
Reveladas as fontes, onde fica a originalidade de Guilherme Manpuya? «Tento exprimir na tela, as minhas ideias, os meus fantasmas, no que designo de “realismo figurativo”. Respeito o corpo humano, os padrões, a harmonia e a proporção, mas dou-lhe uma fisionomia figurativa», revela. E explica: «Por exemplo, vejo um determinado real e dou-lhe uma expressão que, sem nunca deixar de ser esse real, adquire um carácter especial e único que está e não está nesse real concreto».

Trata-se de um momento, «produto do espírito, que retira força ao tempo». A obra de arte «é uma cristalização do espírito, do ponto de vista formal e material», explicita. O “realismo figurativo” coloca o real «fora do tempo» e, simultaneamente, «é um momento que permite compreender mais profundamente o real que imita e exprime», acentua Manpuya. «A eternidade é uma criação artística», conclui.

Para o artista, a visão é um dom e sabe que o gesto que determina o traço, tanto lhe pertence, como é de algo que, através dele, ganha sentido social. O exemplo vai retirá-lo a Mukichi, ente místico das Lundas, «um dançarino que surgiu da noite do tempo e nada se sabe sobre a sua geração. O tempo não passa por ele e a sua figura é uma presença da nossa alma», confidência.


Aqui, surge a aparente contradição entre «o tempo não pára», título da exposição, e a eternidade do momento. Guilherme Manpuya resolve a interrogação: «o momento é a intersecção do espírito no material, uma cristalização que vive através da memória».

sábado, 18 de outubro de 2014

Entrevistas da Leonardo, revista de filosofia portuguesa_António Duarte




Entrevista do escultor António Duarte (Caldas da Rainha, 1912 – 1998) publicada na Leonardo, revista de filosofia portuguesa, em Junho de 1988,  que começa assim: "Talvez o tempo se associe às palavras e nas palavras de António Duarte a velhice, que muitos, tragicamente, vêem crepuscular e invernosa, é o suave prelúdio de uma renascença, de uma Vida Nova que na vida velha, envelhecida, importa preparar. Foi num primaveril princípio de tarde de Março que o escultor nos recebeu (o Francisco Moraes Sarmento, o Paulo Perloiro e o João Luis Ferreira), primeiro em sua casa e, depois, no seu estúdio em Belém."




















terça-feira, 19 de agosto de 2014

Tertúlia da Filosofia Portuguesa: a visita de Ana Maria Moog e António Paim

Fotos que registam o dia em que recebemos Ana Maria Moog e António Paim, da Universidade Gama Filho (Brasil), na Mimosa do Camões, onde nos reuníamos, às terças-feiras. Reconhecem-se Henrique Barrilaro Ruas, Afonso Botelho e Gonçalo Magalhães Colaço (sentados). Da esquerda para a direita António Brás Teixeira, João Bigotte Chorão, Paulo Borges, Álvaro Dentinho, António Quadros, António Paim, Ana Maria Moog, Pó, Francisco Moraes Sarmento, Luis Viana Baptista, Paulo Perloiro, João Luis Ferreira e Manuel Cândido.

terça-feira, 1 de julho de 2014

Ainda António Quadros e Miguel Torga

Apesar do silêncio público de Miguel Torga sobre os escritores, filósofos e poetas da Escola de Filosofia Portuguesa, o certo é os conhecia e tinha-os em boa conta. Na verdade, Torga era visita nocturna e diária de uma biblioteca, na qual os autores da filosofia portuguesa tinham lugar próprio e destaque. N'"A Criação do Mundo", o escritor revela "simplesmente, batia a uma porta que se abria a ranger" acedia a um "sótão forrado de livros e povoado de rituais". Já anteriormente, no XII volume do "Diário", Torga referindo-se à mesma biblioteca, escrevera: "Arruma Portugal numa estante". E o Portugal que se alinhava não eram só os "guias dos seus monumentos e das suas estradas, crónicas, rifoneiros, monografias etnográficas, álbuns de cerâmica e de mobiliário", "salvados do naufrágio" da Pátria a que se assistia em 1976, que aliás não tinham esta intenção, mas também todos os autores da Escola de Filosofia Portuguesa. Nós próprios, nesta biblioteca, nos iniciámos na tradição filosófica, depois de passarmos pelo existencialismo francês e alemão.

Entre as lombadas visíveis, e bem visíveis, constavam as de António Quadros. Torga para além de os consultar na biblioteca, também os lia e comentava por vezes.
 
A troca de correspondência entre os dois intelectuais mostra que existia uma admiração mútua, apesar do "complexo de esquerda" que Torga por vezes denotava e o fazia calar o que lhe ia na alma. Em carta dirigida a Quadros, Miguel Torga escreve a 1 de Maio de 1987, a propósito de "Portugal, Razão e Mistério": "Foi uma bela empresa a que meteu ombros, esta de procurar, e conseguir, abrir-nos os olhos para a evidência de um Portugal oculto, que todos, sem darmos conta, trazemos na memória e na imaginação. Cá fico, com água na boca, à espera do terceiro volume da série".

Mais tarde, a 16 de Março de 1989, sobre "A Ideia de Portugal na Literatura Portuguesa dos Últimos Cem Anos": "Li-o com o alvoroço que pode calcular, e felicito-o sinceramente por um trabalho que passa a ser consulta indispensável para quem deseja conhecer o que pensaram e disseram da nossa pátria gerações sucessivas. Se nem sempre pude estar de acordo cm alguns pontos de vista e juízos estéticos nela formulados, e se preferisse um texto mais preciso e menos repetitivo, percorri, contudo, gratamente o restante espaço da obra, rendido à lucidez que a ilumina". Falta dizer que Torga agradece as "palavras de solidariedade" que Quadros lhe dava notícia desde o Brasil.

"traço de união" entre Miguel Torga e António Quadros era a idealidade patriótica, a portugalidade se quisermos, talvez mais próximo do sentimento no primeiro; talvez mais direcionado para o espírito no segundo.

segunda-feira, 30 de junho de 2014

Quadros, Torga, Eduardo Aroso e eu

A minha publicação sobre Torga e Quadros (pode ser lida aqui) suscitou uma curta nota de Eduardo Aroso que publico acompanhado pelo meu comentário.


Eduardo Aroso: Apesar de eu ter vivido sempre em Coimbra, conhecer e felizmente ser amigo do Leandro Moraes Sarmento, apenas três vezes contactei com Torga. Não importa agora o escritor enquanto pessoa, ou seja, sobre o que dizia na chamada conversa solta, importa, isso sim, (e porque aqui não há espaço para tal) salientar alguns aspectos relacionados como o texto.
É inquestionável a portugalidade (termo de António Sardinha) que atravessa toda a escrita do poeta transmontano, e – o que tende a ser esquecido ou minimizado – a descrição das relações luso-brasileiras, nomeadamente na obra "Traço de União". Sobre a retirada do mercado dessas duas obras primeiras, o não reconhecimento delas do poeta, é um facto que aconteceu com outros poetas, por exemplo, com Eugénio de Andrade. Os primeiros escritos (salvo raras excepções) são sempre o que são. É claro que Torga, como muitos outros, na época, começou por acreditar na ideia de uma Europa na qual Portugal poderia tirar a ferrugem, embora logo depois começasse a desconfiar; todavia manteve, também como muitos outros, que para se ser verdadeiro teria que se ser de esquerda, embora audaciosamente tenha escrito no "Diário" que preferia morrer a concordar com a invasão da Checoslováquia. Não sei se também com o mainstream da época comungava da ideia de que "o movimento da filosofia portuguesa" estava ligado ao Estado Novo, ideia que ainda hoje perpassa na incultura de muitos intelectuais portugueses, intelectuais esses que agora descrevem bem a catástrofe, mas que riram na década de 80, quando o filósofo Orlando Vitorino disse que Cavaco Silva (na época primeiro-ministro) não passava de um fraco contabilista! E apesar de Torga ser o escritor da nossa terra, do sangue português, até de um certo nosso benigno paganismo, da eternização do homem rural português, e porque talvez fosse essencialmente poeta e ficcionista, ele tenha escrito (obviamente com toda a legitimidade e liberdade) na obra "Portugal", que não gostava do Porto de Sampaio Bruno!
Na verdade, Miguel Torga é já um grande clássico da nossa literatura, "poeta da resistência lusíada", como disse António Quadros. E num futuro muito próximo, quando voltarmos a olhar para o território de outra maneira que não só para auto-estradas, depois de passadas certas modas e modismos, influenciados por ideologias e imprensas várias, Torga será tomado de novo como poeta da autenticidade e literariamente como a expressão do labor árduo mas profícuo do que é o espírito oficinal da escrita, em que cada palavra é submetida ao escopro da permanente e subtil atenção.
Um abraço, caro Francisco!



Francisco Moraes Sarmento: Amigo Eduardo Aroso. Agradeço o seu oportuno comentário. Os serões de Miguel Torga eram passados no sótão do nº 5 da Praceta Fernando Pessoa (casa dos meus Avós), no escritório e biblioteca do meu Tio. Tinha conhecimento de algumas obras dos escritores, poetas e filósofos de filosofia portuguesa. Estava atento ao seu patriotismo e tinha-os em boa conta. Aliás, este aspecto também pode ser testemunhado pelo seu “discípulo nocturno”, João Bigotte Chorão. Nas tertúlias, o português Miguel Torga era considerado um sábio da imensidão da nossa Terra e dos nossos bichos – nós mesmos bichos de toda a Terra, para além de “poeta da resistência lusíada”. Nós mesmos, na página “Sopro” que crei no “Diário de Coimbra” nos anos oitenta, fizemos uma homenagem à portugalidade de Torga ao fazer publicar num Dia de Portugal (não me lembro o ano) uma página completa de poesia, para espanto de muitos dos meus camaradas e penso também da direcção do jornal. Nesse dia, o “Sopro” publicava versos de Luis de Camões, Guerra Junqueiro, Teixeira de Pascoaes, Fernando Pessoa e Miguel Torga (o único vivo).
Apenas uma nota: o que se passava em minha casa era mais do que “conversa solta”. O meu Tio era uma espécie de “eminência parda” de Torga (aspecto que quase reconhece de forma velada num volume de “A Criação do Mundo”) e os seus livros eram revistos pela minha Tia Maria da Conceição. Se existem “padrinhos”, são eles.
A gestão de imagem que o poeta fazia, muito de acordo com os aspectos que referi no primeiro relato, acrescentava perturbações à vera angústia que cerceava a sua alma de patriota quanto ao destino português.